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Texto de Francisco Babo para a exposição colectiva com Vítor Israel, "Good Brush Habits",
Galeria do Sol, 2018:


Carta à Marta.


Lembro-me vagamente de ti. Recordo dizeres que o mundo está repleto de coisas que nunca aconteceram. Completo seria ele assim se quedasse demoradamente no tempo.

A antepenúltima vez que te pus a vista em cima movias uma mistura de esguichos carmim sobre um fundo arborizado pela clorofila. Levavas um coelho pela cartola, de dentes bem vincados na sua carne quente. A sua pele era a minha cola.

O teu território chocou com o meu minha querida Marta e a tua curiosidade escancarou os alçapões de luz na floresta. Dei-te caça. Os navios caceados receberam-te plana, lisa, bela como torpedo.


Bons hábitos de pincel. Nossos espíritos deformados pelo mergulho em económico solvente,nossa forma um reencontro, uma pintura emergente.

Assim vai o mundo, assim vão os hábitos. São os rácios entre as grandezas do que soubemos precaver. Visões. Admissões de contraste. No reino da Animalia no filo dos cordados e na classe dos mamíferos, na ordem carnívora da família dos mustelídeos vives croata Marta.

Os melhores pincéis do mundo têm o teu pêlo. De sebo escorreito crescem na direcção de Saturno melhores pêlos para os melhores temperamentos. Lavados no centro do mar, colhidos dos regatos, aglomerados na ponta de pequenas lanças de madeira. Sinto a falta da tua vivacidade. Pinto de saudade.


Havias de gostar de aqui estar Marta. Seria o teu espírito curioso imune à boa aventurança destas pinturas? Julgo que não.

As costuras de luz do Luís Figueiredo; as formas pungentes e coloridas do Vítor Israel. Sorrimos de relance. Penugem.


Beijos e considerações.


F.B.


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Texto de Vítor Israel para a exposição "2nd Floor Landscape Reverie",
Galeria MCO Arte Contemporânea, 2016:



Tchim Tchim (from Marques with Love)

-Tenho a visão turva.
-Era menos uma litrosa.
-Não, afinal é mesmo assim!
-Conheço esta gaja de algum lado...
-É normal, trabalha na rua há séculos.
-Pois, passo por aqui muitas vezes.
-É mais rodada que o Deus me livre.
-Uma mulher com História...
-Grande matriarca.
(grande barrete)

As conversas voam. As imagens ficam.

-Sabes, até estava a curtir o seu paleio, mas depois começou a descascar no Rothko...
-Hey pá... Que cretino!
-Podes crer...

Brindemos aos nossos sonhos

-Gostava de falar com aquela miúda.
-Miúda? É quase tão velha como um dinossauro.
-Engana bem e não fala.
-Não fala?
-Nem uma palavra.
-Eu disse-te, devíamos ter trazido outra litrosa...
-O café já fechou?
-Agora só nos músicos.
-Sabes o que diz o ditado?
-Não.
-Que a lebre vence mas a tartaruga conhece melhor o caminho.
-É bonito não é?
-Sim, é lindo.

Celebremos o nosso mar de infortúnio

-Normalmente o que interessa nestas coisas é fazer um somatório de lugares-comuns. Quase dá vontade de citar o poeta.
-A sério? Não faças isso...
-Faço pois: “Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem”.
-Que sainete.

Desossar

Do segundo andar onde tudo se passa,
chegam vários cheiros mas nenhum é de linhaça.
Dir-se-ia que é carcaça,
bem nutrida, bem vivaça,
corre tanto que até esvoaça!


Vítor Israel, 2016



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Texto de Samuel J. M. Silva para a exposição "O verdadeiro Artista Ajuda o Mundo
Revelando Verdades Místicas (e é de borla)",
Espaço Segundo o Piso, 2010:




Things-being-what-they-are-not

Reflexão de Samuel J. M. Silva sobre a nova exposição de Luís Figueiredo.

Não há aqui abstracção, a existir, será por distracção.
O trabalho de Luís Figueiredo é, acima de tudo, um movimento distractivo da coisa concreta. Uma espécie de reactivação de processos precedentes do abstraccionismo de Malevitch, Kandinsky ou Mondrian, onde falar de abstracção era, fundamentalmente, falar sobre uma tarefa de desconstrução (limpeza, estilização, redução) geométrica da forma natural. Assim o fez Cézanne, nunca se abstraiu do seu Mont-Saint Victoire, por mais que o tentasse, nunca a sua pintura deixou de remeter para um universo perceptivo subjacente, ela seria sempre em última instância um gesto mimético-representativo da coisa real. O mesmo não acontece, na abstracção pós-1913 (“Quadrado preto” de Kasimir Malevitch), onde assistimos progressivamente a uma mudança de entendimento, caminhando-se no sentido da radicalização e autonomia da superfície pictórica. Uma ruptura no sentido ascendente. Pois, o destino dessas pesquisas pictóricas era o esplendor metafísico, a pureza e intangibilidade atemporal, mesmo na singularidade da abstracção dos anos sessenta, observamos uma anulação furtiva de qualquer tipo de interpretabilidade figurativa ou simbólica. Ora, a pintura de Luís Figueiredo não comunga destes pressupostos modernos de abstracção, ela desafia a todo o momento o que existe, ela está demasiado atenta da realidade que mexe à sua volta, podemos dizer sim, que ela é reagente de uma arte Pop(ular). Pois, reactiva determinadas feições da Pop: a ideia de “desierquização” das imagens, nivelando a realidade imagética e referente (nenhuma distância existe entre um saco de cimento Secil e uma pintura iconográfica do século XIX); eron(t)iza o quotidiano, reclamando atenção e crítica a determinado objecto, acção ou imagem (a forma despreocupada com que um trolha abre um saco de cimento ou as contemporâneas intervenções na paisagem montanhosa portuguesa); tem aparência industrial, embora construída através de um aturado processo manual; tem uma atracção particular pela tradição (já não é o que era?), pelo fora de prazo mas sempre recuperável, pelo vulgar.
De forma concomitante a sensibilidade e gosto de Luís Figueiredo possuem qualquer coisa de “Camp”, nos moldes que Susan Sontag escreveu, no seu ensaio Notes on “Camp”, de 1964. Trata-se de uma espécie de encanto pelo genuinamente mau, pelo exageradamente artificial, pelo naturalmente bizarro, como define o Camp statment: “It ́s good because it ́s awful”, uma espécie de bom gosto do mau gosto.
Isto porque estamos perante alguém que se apraz e ironiza humoristicamente sobre certos valores, objectos, acontecimentos, acções e atitudes particularmente desclassificadas: desde organizar um jantar com amigos para celebrar o acontecimento “Festival Eurovisão com Eládio Clímaco” ao gosto particular por determinados (os mais desgostosos) universos musicais ditos Pimba, comprovam que estamos na presença de uma espécie de efeito “Camp”.
E sua arte não escapa a esta visão cómica do mundo, basta renovar o olhar pelo título da exposição que se apresenta – “O verdadeiro artista ajuda o mundo revelando verdades místicas (e é de borla!) ”.
Só ainda não tenho a certeza se devo continuar a olhar para o trabalho do Luís enquanto Pintura. Ele torna- se mais arrojado enquanto objecto (de superfícies pintadas) que tenta parecer aquilo que não é.